domingo, 16 de setembro de 2012

Salmo 1 - Melodia Genebrina




Prefácio de Calvino ao Saltério de Genebra

 (Tradução: Lucas G. Freire)
Da mesma forma que é um requisito básico do cristianismo, e muito necessário, que cada um dos crentes observe e mantenha a comunhão da igreja em sua vizinhança, freqüentando as reuniões tanto no Domingo como também em outros dias para honrar e para servir a Deus, é vital e razoável que todos tomem conhecimento e ouçam aquilo que é dito e feito no templo, recebendo, assim, fruto e edificação.

Discernimento é essencial
Porque nosso Senhor não instituiu a ordem que devemos observar quando nos reunimos em seu nome somente para nossa diversão e passatempo ao [meramente] assistir [ao culto]. Pelo contrário, ele quis que isso fosse proveitoso para todo o seu povo, tal como S. Paulo testifica, ordenando que tudo o que for feito pela igreja seja direcionado à edificação comum de todos, e isso não seria ordenado pelo servo se não fosse a intenção do próprio Mestre. Mas isso não pode ser implementado a não ser que sejamos instruídos no conhecimento de tudo aquilo que foi ordenado para nosso próprio benefício. Porque afirmar que é possível ter devoção, tanto nas orações como nas cerimônias, sem entender nada, é uma grande zombaria, não importanto o quanto essa [mentira] é repetida. [E] essa boa afeição a Deus não é uma coisa morta nem embrutecida. Pelo contrário, é um momento muito vivo, que procede do Espírito Santo quando o coração for adequadamente tocado e o entendimento for iluminado. E, com efeito, se fosse possível ser edificado por aquilo que se vê sem compreender o que significa, então S. Paulo não proibiria tão rigorosamente que se falasse em uma língua desconhecida [sem interpretação], nem utilizaria o raciocínio de que não há edificação quando não há ensino. Então, se de fato quisermos honrar as ordenanças sagradas do nosso Senhor que usamos na igreja, é primordial conhecer o seu conteúdo, o seu significado e a sua finalidade, de modo que seu uso seja útil e salutar e, conseqüentemente, regulado de forma justa.
Elementos do culto
Ora, há, resumidamente, três coisas que o Senhor ordenou que observássemos no nosso ajuntamento espiritual, a saber, a pregação de Sua Palavra, orações públicas e solenes e a ministração dos sacramentos. Aqui, abstenho-me de falar sobre sermões porque não vem ao caso. Sobre os demais fatores, temos o mandamento expresso do Espírito Santo [ordenando] que as orações sejam feitas em linguagem difundida entre as pessoas, e o Apóstolo disse que o povo não deveria responder “Amém” àquela oração feita em idioma estrangeiro. Contudo, isso é porque as orações são feitas em nome e em lugar de todos, de modo que todos devam participar. Assim, há uma grande imprudência por parte daqueles que introduziram a língua do Latim na igreja, onde ela não é compreendida de forma geral. E não há nem sutilezas nem exceções que possam desculpá-los, porque essa prática é perversa e desagrada a Deus. Além disso, não há motivo para pressupor que Deus julga agradável aquilo que obviamente contraria sua vontade e, por assim dizer, apesar dele. Portanto, nada o afeta mais do que ir, dessa forma, contra a sua proibição, e gabar-se de tal rebelião como se fosse uma coisa sagrada e, inclusive, até merecedora de elogios.
Sacramentos ministrados junto com ensino
No que tange aos sacramentos, se examinarmos a fundo sua natureza, reconheceremos que é um hábito perverso celebrá-los de tal forma que o povo não somente os veja, mas também compreenda os mistérios contidos ali. Porque se são “palavras visíveis” (tal como Sto. Agostinho os apelida), é preciso não somente que eles sejam uma demonstração externa, mas também que o ensino seja juntamente ministrado, atribuindo-lhe inteligibilidade. Inclusive, o nosso Senhor, ao institui-los, demonstrou muito bem isso, porque diz [na Palavra] que eles são testemunhos da aliança que ele fez conosco, confirmada por sua morte. É preciso, portanto, que lhes seja explicado o sentido, para que possamos conhecer e compreender aquilo que ele disse. De outra forma, teria sido em vão que o Senhor abriu seus lábios para falar, se não tivesse à sua volta ouvidos para ouvir. Logo, não são necessárias maiores discussões sobre isso. E, quando a questão é examinada com bom senso, fica claro que é mera bagunça distrair as pessoas com símbolos que para elas não faz sentido. Por isso, é fácil ver que os sacramentos de Jesus Cristo são profanados ao serem ministrados de forma que o povo não compreenda quaisquer dizeres que são pronunciados acerca deles. Com efeito, pode-se ver que diversas superstições emergem de tal prática. Por exemplo, muitos consideram que a consagração, digamos, da água do Batismo ou do pão da Ceia do Senhor, são uma forma de encarnação, querendo dizer [com isso] que, uma vez aspirados e pronunciados com a boca os dizeres, criaturas incapazes de sentir sentem o poder, embora as pessoas nada compreendam. Entretanto, a verdadeira consagração é aquela que se faz através da palavra de fé, quando declarada e recebida, tal como Sto. Agostinho disse: “aquilo que está expressamente contido nas palavras de Jesus Cristo”. Porque, ora, ele não disse ao pão que aquilo é o seu corpo. Ao invés disso, ele dirigiu a palavra à companhia dos fiéis, dizendo “tomai, comei” etc. Logo, se quisermos celebrar em verdade esse sacramento, é necessário para nós que tenhamos também o ensino, através do qual se explica aquilo que é simbolizado. Reconheço que isso parece meio estranho àqueles que não estão acostumados, tal como ocorre com toda novidade. Mas é muito sensato [de nossa parte] – se somos discípulos de Jesus Cristo – que prefiramos suas instituições aos nossos costumes. E aquilo que ele instituiu desde o começo não deve representar tanta novidade assim.
Se isso ainda parecer impenetrável ao entendimento de qualquer pessoa, é preciso orar a Deus para que, se for de sua vontade, ele ilumine os ignorantes, concedendo-lhes a compreensão do quão sábio é que todas as pessoas não aprendam a se fundamentar sobre os próprios sentidos, nem na sabedoria maluca de seus líderes cegos. Porém, para uso da igreja, pareceu proveitoso publicar, quase como um formulário, estas orações e sacramentos para que todos reconheçam aquilo que ouvem e que vêem durante a reunião cristã. Contudo, este livro não cumprirá seu objetivo só para o povo desta igreja, mas também para aqueles que desejam conhecer qual forma os crentes deveriam utilizar e seguir quando se reúnem no nome de Cristo [para cultuar].
Dois tipos de oração
Até aqui, tratamos em resumo do modo de celebração dos sacramentos e santificação do matrimônio e, similarmente, das orações e dos louvores que usamos. Falaremos mais acerca dos sacramentos depois. Quanto às orações públicas, existem dois tipos. Aquelas somente com palavras e aquelas que são cantadas. E isso não foi inventado pouco tempo atrás. Foi assim desde os primórdios da igreja, pelo que consta nos relatos históricos. A mesmo S. Paulo menciona oração não somente pela boca, mas também com o canto. E sabemos, de fato, que o canto tem grande força e vigor para mover e inflamar os corações das pessoas a invocar e a adorar a Deus com zelo mais veemente e ardente. Deve-se sempre tomar cuidado para que a música não seja leve nem frívola, mas que tenha peso e majestade (como diz Sto. Agostinho) e, também, há uma considerável diferença entre a música que se compõe para o entretenimento nas tavernas e botecos e os Salmos que são entoados pela igreja na presença de Deus e de seus anjos. Mas quando qualquer um quiser raciocinar corretamente sobre a forma que é aqui apresentada [ie, no Saltério de Genebra], esperamos que ela seja encontrada santa e pura, uma vez que é simplesmente destinada à edificação mencionada anteriormente.
Expressão pelo canto
Além disso, a prática do canto pode se estender ainda mais, servindo nos lares e no campo como um incentivo para nós, tal como um órgão de louvor a Deus, e [servindo] também para elevar-nos os corações a ele, para nos consolar através da meditação em sua virtude, bondade, sabedoria e justiça, o que é mais necessário do que se pode imaginar. Primeiramente, não é sem motivo que o Espírito Santo nos exorta tão cuidadosamente nas Sagradas Escrituras a nos alegrarmos em Deus, e que toda a nossa alegria é ali resumida em seu fim verdadeiro, porque ele sabe como somos inclinados a nos alegrar em futilidades. E, como a nossa natureza nos leva e nos induz a buscar todos os meios de alegria insensata e viciosa, nosso Senhor, pelo contrário, nos desvia e nos retira das tentações da carne e do mundo, apresentando-nos todos os meios possíveis para que nos ocupemos com alegria espiritual que ele tanto nos recomenda.
Importância da música
Ora, dentre todas as outras coisas que são feitas para recrear o ser humano e para dar-lhe prazer, a música é uma das principais (senão a primeira). E é necessário que a vejamos como uma dádiva de Deus para aquele fim. E também, por causa disso, deveríamos tomar todo o cuidado para não abusarmos dela, por medo de a contaminarmos e a mancharmos, convertendo-a em [instrumento para] nossa condenação, quando ela [deveria ser] dedicada ao nosso proveito e uso. Se não houvesse qualquer outra consideração além dessa, teríamos que os inclinar a moderar o uso da música de maneira a servir a todas as coisas honestas e a não dar margem para a nossa propensão a dar espaço para a dissolução, ou para nos colocarmos em prazeres efeminados e desordeiros. E, também, para que ela não se torne meio de lascívia e de vergonha.
Poder da música
Outra coisa deve ser dita: é dificil que haja no mundo qualquer outra coisa que seja mais capaz de influenciar e desviar dessa forma a disposição do ser humano, tal como Platão prudentemente observou. E, de fato, percebemos pela experiência que [a música] tem um poder sagrado e quase incrível de mover os corações de um jeito ou de outro. Portanto, devemos ser ainda mais diligentes ao regulá-la de forma tal que ela seja útil para nós, e [que] não [seja] perniciosa de forma alguma. Foi por esse motivo que os doutores antigos da igreja reclamaram freqüentemente que as pessoas de sua época estavam viciadas em músicas desonestas e despudoradas, às quais esses [doutores] se referiam – com razão – como veneno mortal e satânico para corromper o mundo. Além do mais, ao falar agora sobre a música, faço duas divisões. A saber, a letra, ou assunto e conteúdo. E, em segundo lugar, a música, ou melodia. É verdade que toda má palavra (como S. Paulo disse) corrompe a boa forma, mas quando a melodia a acompanha, fere ainda mais ao coração, e penetra nele, como se através de um funil. Tal como o vinho se derrama em um vaso, o veneno e a corrupção se destilam às profundezas do coração pela melodia.
Por que a escolha dos salmos
O que deve ser feito, então? Usarmos músicas não somente honestas, mas também santas, que nos sirvam de estímulo para que oremos e adoremos a Deus, e para que meditemos sobre sua operação para que o amemos, temamos, honremos e glorifiquemos. E, também, o que disse Sto. Agostinho é verdade: que ninguém é capaz de cantar dignamente a Deus, a não ser [que cante] aquilo que já recebeu dele. Portanto, quando buscarmos profundamente, e procurarmos aqui e acolá, jamais conseguiremos encontrar canções melhores e mais adequadas a esse propósito que os Salmos de Davi, que o Espírito Santo falou e compôs através dele. E, além disso, quando os cantamos, estamos certos de que Deus no-los põe na boca, como se ele mesmo estivesse cantando através de nós para exaltar a sua glória. Donde vem a exortação de Crisóstomo a que, tanto homens como mulheres e crianças pequenas se acostumem a cantá-los, a fim de que isso sirva de uma espécie de meditação para que nos associemos à companhia dos anjos.
É preciso cantar com entendimento
De resto, é necessário ressaltar aquilo que S. Paulo disse: que cânticos espirituais não podem ser bem entoados, a menos que sejam [cantados] de coração. Mas o coração requer inteligência. E é nisso (diz Sto. Agostinho) que reside a diferença entre o canto dos homens e o dos pássaros. Pois pode bem ser que um sabiá, um uirapuru ou um papagaio cantem bem, mas jamais o farão com entendimento. A dádiva singular que os homens têm é cantar com conhecimento daquilo que cantam. Sujeitos à inteligência estão o coração e os sentimentos, e isso ocorre só quando temos o hino impresso em nossa memória para que jamais cessemos de cantar. Por esses motivos, o presente livro, por essa causa, além daquilo que já se mencionou, é uma recomendação única para cada um que deseja se alegrar honestamente e de acordo com [a vontade de] Deus, para seu próprio bem-estar e para o proveito das pessoas próximas. E, assim, [o saltério] todo se faz necessário e recomendável por mim, sendo digno de reconhecimento e elogio. Mas todo o mundo deve ser ensinado a substituir as músicas vãs e frívolas, bobas e enfadonhas, cruéis e vis e, em seus efeitos, danosas e prejudiciais que tem utilizado até agora, para que se acostume doravante ao canto desses hinos divinos e celestiais junto com o grande rei Davi. Sobre a melodia, pareceu que ela deve ser moderada, à maneira que temos adotado para levar o peso e a majestade apropriados ao conteúdo, e também adequadas ao canto pela igreja, conforme aquilo que foi dito.
De Genebra, 10 de Junho, 1543.

Fonte: 

“Calvin’s Preface to the Psalter”, trad. para o inglês do prefácio em Les Pseaumes mis en rime francoise par Clément Marot et Théodore de Béze. Mis en musique a quatre parties par Claude Goudimel. Par les héritiers de Francois Jacqui (1565). Disponível em inglês em:http://www.fpcr.org/blue_banner_articles/calvinps.htm

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